quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Meu Último Suspiro

No livro "Meu Último Suspiro"
 , o cineasta espanhol Luis Buñuel (1900-1983) conta suas memórias de uma forma simples e sem muito rigor cronológico. É mais uma conversa em que o interlocutor somos nós do que um depoimento detalhado de tudo o que viveu, e com quem conviveu, desde seu nascimento na província espanhola de Calanda à sua morte oitenta e três anos depois na Cidade do México.

Claro que Buñuel preenche suas memórias com seus amigos, familiares, as ideias políticas, seus ideais de vida, que foram se modificando ao longo do tempo, conforme sua situação pessoal ou o ambiente político.

Buñuel não veio de família pobre, seu pai era um abastado fazendeiro cuja fortuna fora forjada em Cuba. Nem ele ou seus sete irmãos passaram dificuldades financeiras. Teve uma infância feliz e solta, tomando contato com a natureza, e logo entregando-se a práticas esportivas com grande vigor.

Aos 17 anos foi estudar em Madrid, numa instituição prestigiada e elitista, onde começou a se interessar por artes em geral, principalmente a pintura e a poesia. Ficou amigo do futuro poeta Federico Garcia Lorca, de Salvador Dali enquanto sua carreira estudantil ficava cada vez mais em segundo plano, frustrando os planos de seu pai que queria vê-lo agrônomo.

Aos 25 anos foi pra Paris, onde manteve contato com vários expoentes do Surrealismo, entre eles André Breton. Aprendeu mágica, hipnose e se envolveu com várias práticas que ele e seu grupo chamavam de "surrealistas". 

Aliás, para os membros desse grupo o Surrealismo era tido quase como uma religião. Tanto que aqueles que eram considerados "traidores" por motivos vários eram afastados sumariamente de seu convívio. O próprio Buñuel mais tarde seria vítima disso.

Em 1929, ainda em Paris, Buñuel realiza seu primeiro filme, "Um Cão Andaluz". Escrito em parceria com seu amigo Salvador Dali, o filme causou muita polêmica, a primeira de várias em que Buñuel se veria. Depois vieram "A Idade do Ouro", outro filme surrealista, ainda vivendo em Paris.

Logo em seguida foi para Hollywood, convidado pela Metro Goldwyn Mayer a que "aprendesse" as técnicas do cinema americano a fim de de que mais tarde se tornasse um diretor de cinema naquele país. Logicamente Buñuel não tinha nenhum interesse em se fazer cinema sob o sistema dos estúdios americanos. Portanto todo o tempo em que lá esteve gastou seus dias em festas e jantares com famosos como Charlie Chaplin e Sergei Eisenstein.

De volta a Espanha lá permaneceu até a eclosão da Guerra Civil Espanhola de 1936. Voltou a viver nos EUA, trabalhou no Moma, em Nova York. E em 1946 recebeu o convite para filmar no México. Não só aceitou como viveu lá por catorze anos. Nos quais realizou vinte filmes. No começo eram apenas filmes feitos sob encomenda mas aos poucos Buñuel conseguiu imprimir sua marca em filmes como "O Alucinado", "Os Esquecidos", "Ensaio de um Crime" e "A Adolescente".

Em 1960 retorna à Espanha franquista para mesmo sob os protestos de seus amigos republicanos, rodar "Viridiana". Filme altamente subversivo para os padrões totalitários mas que passou pela censura incólume. O filme ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes.

Voltou ao México para filmar "O Anjo Exterminador" e "Simão no Deserto" e a partir disso volta à França onde passou a realizar todos os seus filmes subsequentes. E talvez seus maiores sucessos, filmes pelos quais é lembrado até hoje: "A Bela da Tarde", "Tristana", "Via Láctea", "O Discreto Charme da Burguesia", "Esse Obscuro Objeto do Desejo".

Buñuel é um cineasta que não deixou herdeiros artísticos. O surrealismo aos poucos se tornou uma peça de museu, desaparecendo de todas as expressões da arte, da literatura, do cinema, da pintura. E mesmo grandes nomes do cinema espanhol como Pedro Almodóvar ou Bigas Luna, não tem nada em comum com o cinema de Buñuel.

E nos dias de hoje em que as audiências tem dificuldades até em reconhecer ironia, o que dirá de algo tão anárquico quanto o surrealismo. Talvez porque a nossa realidade em si já seja difícil de compreender.



















quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Histórias Que a Escola não Conta

Em Breve Tudo Será Mistério e Cinza, de Alberto A. Reis, começa contando a história de François e sua esposa Honorée (mais tarde conhecida como Eufrasia). O romance inicia-se no embarque dos dois num navio que zarpa para o Brasil. Estamos em 1825, e naquela época uma viagem marítima intercontinental podia se transformar num pesadelo. Os navios não tinham como fazer frente as intempéries, e a surpresas desagradáveis viam-se os passageiros à mercê por meses.

O propósito da viagem do jovem casal era desbravar o interior da província de Minas Gerais, cuja fama de seu solo rico em ouro e diamantes havia chegado ao velho mundo. Tudo fora preparado pelo sogro de François, o sr. Thierry Martinet, dono de uma famosa joalheria de Paris, que acossado por uma chantagem envolvendo o desaparecimento de quatro diamantes brutos de uma condessa, que estavam em seu poder, resolve por bem mandar a filha e o genro para o Brasil, a fim de mantê-los a salvo dos perigos que vislumbrava haja visto as ameaças que vinha sofrendo.

Depois de uma viagem terrível, cheia de contratempos, os dois chegam ao Rio de Janeiro.
Na capital, François recebe no Consulado Francês a terrível notícia de que as ameaças ao sogro levaram-no à morte. Fora assassinado pelos chantagistas cruelmente. E com ele morreram também seus dois filhos, cunhados de François. Portanto sua esposa, Honorée, não tinha mais família alguma. O cônsul entrega-lhe uma carta enviada pelo sogro antes de sua morte, em que explica toda a situação em que estava envolvido, as suspeitas sobre o suposto ladrão das pedras preciosas, que em conluio com a própria dona delas, havia encontrado uma forma de lhe extorquir. Bem, era nisso em que o joalheiro defunto achava que estava envolvido. O que ele não sabia, e nós, leitores, só saberemos lá pela parte final do romance, é que o ladrão das pedras tinha sido o próprio François. E que sua concordância em ir para o Brasil, cumprindo assim as determinações do sogro, na sua cabeça angustiada pela culpa, se mostrava a melhor maneira de ressarci-lo do roubo. Ledo engano.

Mas agora não havia como voltar atrás. A única coisa a fazer era continuar no Brasil, partir para Minas, e pôr em prática os planos de prospecção da riqueza, que de tão abundante, apenas esperava pelos que primeiro a alcançassem. É claro que não seria tão simples assim.

A sorte de François foi contar com a ajuda de algumas pessoas tão poderosas ou influentes quanto aqueles que gostariam de ver o estrangeiro bem longe do minério nacional. O fazendeiro Francisco Murat, que se transformou numa espécie de conselheiro do francês, principalmente no que dizia respeito à periculosidade do coronel Hermenegildo, homem irascível, que marcava duelos por qualquer desentendimento (e trapaceava para assegurar sua vitória), e vivia atacado pelas hemorroidas.

Outra pessoa que fez questão de ajudar François foi d. Maria da Lapa, uma velha viúva, que vivia sozinha com seus escravos, vivendo da renda de seu marido morto. Graças a ela François entrou em contato com a poderosa d. Anna Jacinta, também conhecida como d. Beja, poderosa cortesã que mantinha as melhores relações na sociedade mineira, e foi de imensa valia a François na sua luta pela busca da riqueza.

François, apesar de casado com a bela Honorée, acabou se envolvendo com uma das escravas de d. Beja, a espevitada Duzinda, que depois, movida por um ciúme sem sentido, acaba fazendo com que os planos do francês vão por água abaixo (literalmente).

Uma dos trechos significativos do romance, é a noite em que Honorée, depois de emocionalmente abalada por uma cerimônia típica africana, tem despertada em si um furor sexual que a deixa numa espécie de transe erótico, chegando a assustar o próprio marido.

No aspecto histórico, o que chama a atenção é a acuidade com que o autor discorre sobre as terras e as vilas do interior de Minas. E a revelação de que alguns quilombos, em vez de servirem de território livre para escravos fugidos, acabavam sendo prisões destinadas a membros de tribos rivais quando na África. 
O narrador da história também não faz concessões verbais, nem suaviza expressões bem ao gosto dos tempos atuais. O séc. XIX é apresentado com toda a crueza e crueldade.

A Irmã Caçula

A Irmã de Freud”, de Goce Smilevski, fala sobre abandono e ingratidão, mas também sobre ódio e solidão, amores mal correspondidos, a loucura e seus vários tipos, e também sobre psicanálise. O título remete a Adolfina Freud, a mais nova das irmãs do “grande homem”, ou o “meu Sig de ouro” (como dizia sua mãe), Sigmund Freud, pai da psicanálise, cuja obra transformou-se em totem, marco, monólito (como aquele do “2001”) que ainda serve de baliza a tudo que diga respeito à mente e seus meandros, mesmo que parte de suas ideias sejam tidas hoje como ultrapassadas.

Adolfina é a caçula de oito irmãos, apenas dois deles homens. Quando pequena desenvolveu um laço de união com seu irmão mais velho Sigmund. Este já imerso em livros, estava sempre lhe ensinando algo ou contando-lhe histórias. Os dois não se desgrudavam. A pobreza da família Freud obrigava-os a privações terríveis, a mãe trabalhava como empregada em Viena. Mal tinham o que comer. Portanto o estudo era visto como uma tábua de salvação, e logo Sigmund foi eleito o salvador daquela pátria familiar.

A saúde frágil da jovem Adolfina, somada à penúria em que viviam acabou fazendo com que a mãe Amalia cunhasse a frase que acompanharia a menina por boa parte da sua vida: “Teria sido melhor se eu não tivesse parido você”. Mas as recriminações e grosserias por parte da mãe não limitavam-se a essa frase terrível. Qualquer coisa era motivo para que Amalia externasse seu desgosto pela filha. Logo sua solteirice também passou a ser motivo para comentários maldosos por parte da mãe. Adolfina aguentava tudo estoicamente.

Um dia conheceu Rajner, um jovem tão depressivo quanto ela. Os dois encontraram-se um no outro mas o destino acabou os separando. Outra que marca a vida de Adolfina é Klara, a irmã do futuramente famoso pintor Gustav Klimt. Ela é uma mulher à frente do seu tempo, quebrando tabus de comportamento feminino, códigos de vestimenta, atitudes que a maioria das mulheres do começo do século XX não tinham. Interessava-se por política, defendia o direito dos menos favorecidos e dos explorados pelo precário sistema trabalhista da época. Acabou sendo visada pelos donos do poder, sofrendo perseguições e envolvendo-se em confrontos com a polícia, além de constantemente ser vítima de agressões que acabaram debilitando não só seu corpo como sua mente.

Acabou sendo internada numa instituição para doentes mentais onde teve a companhia da própria Adolfina, que lá se internou por conta da angústia que não lhe abandonava e da impossibilidade de encaixar-se num mundo cada vez mais hostil e sem esperança, em que sua própria mãe lhe dedicava um ódio que parecia infindável.

E seu irmão? Bem, Sigmund transformou-se no Dr. Freud, festejado pela intelectualidade e por seu país. Suas relações com a irmã já não eram as mesmas. Mas às vezes ele a visitava na clínica, ou ela se juntava à família dele em viagens, como para Veneza, por exemplo.

Mas as décadas foram passando, os irmãos de Adolfina foram morrendo e ela se se viu pobre, dividindo sua tragédia com duas irmãs, Rosa e Paulina (que havia ficado cega). Na década de 1930, com a ascensão do nazismo ela encontrou algo mais com que se preocupar, já que eram judeus. A ameaça de invasão da Áustria por Hitler levou o Dr. Freud (já octogenário e debilitado por um câncer bucal) a utilizar passes especiais para fugir do país antes que os nazistas chegassem. Levou consigo sua esposa, seus filhos, o médico que o tratava (e sua família), fez até questão de levar seu cãozinho de estimação. E deixou para trás suas irmãs Adolfina, Rosa e Paulina. Por que fez isso? Era o que Adolfina tentava entender. Quando foi por ela questionado Sigmund simplesmente alegou que não achava necessário levá-las, pois para ele, Hitler não teria sucesso em seu intento de dominar a Áustria. Portanto não haveria necessidade de que elas saíssem de lá. Mas aquilo que ele defendia ser o melhor para suas irmãs não era o que achava ser o melhor para si mesmo.

Assim, às três irmãs Freud restaram os sofrimentos impingidos aos judeus vienenses, a humilhação, as perseguições, e ao final, a morte num campo de concentração nazista.


Futuro do Presente

Texto escrito em 2017:

"Acabei de reler “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, mais ou menos vinte anos depois de fazê-lo pela primeira vez. O que mais chama a atenção na história e a torna tão atual não são as descrições de meios de locomoção ou moradias impensadas, mas sim o comportamento daquela sociedade, seus valores, o que consideram normalidade, e o que absurdo, e o fato de estarmos chegando perto demais de nos tornarmos, num futuro não tão distante, vítimas de uma visão de mundo derivada da vontade de mudá-lo para melhor. 

Encontramos nesse “admirável mundo” uma sociedade com valores bem diferentes dos nossos. Em que a ideia de alguém ter sido criado por um pai e uma mãe parece ser o maior dos absurdos (e causa até mesmo repulsa), em que a monogamia é vista como outra sandice, chegando a ser proibida. Em que as emoções de todos são controladas através de um medicamento, o “soma”, que não chega a ser obrigatório pois todas as pessoas o tomam por livre e espontânea vontade, sabendo ser ele necessário para que possam lidar com as dificuldades da vida ou mesmo com uma suposta crise existencial. O soma regula a vida de todos e todos se deixam regular por seus efeitos. Não saberiam como viver sem ele, e nem gostariam disso, de qualquer forma.

Nesse futuro distópico, o amor não existe, apenas o desejo sexual. E cada ato é sempre com um parceiro diferente. A música como a conhecemos também não, e sim algo que descrito no texto nos faz pensar em um arremedo de música, em que as harmonias, o ritmo, ou a melodia seriam desidratados até que restasse apenas um sinal hipnótico eletrônico, executado para as plateias em salas de concerto. Os livros foram banidos, aliás, os recém-nascidos aprendem a odiá-los através de procedimentos que os relacionam a traumas criados em laboratório. O cinema, como dito acima, surge como um excitador de sensações eróticas através de sensores que afetam lábios e pele (algo parecido com aqueles equipamentos de “realidade virtual”).

Nesse mundo as crianças continuam nascendo mas não através das relações sexuais, e sim de um processo de fertilização in vitro, portanto o sexo não serve mais à procriação. Aliás, a própria ideia de gravidez é outra coisa que causa repulsa a todos, homens e mulheres. Não existem famílias.

A solidão também é algo que foi banido dessa sociedade. A ninguém é permitido ficar sozinho por muito tempo, a não ser durante o sono. Todos devem interagir o tempo todo em atividades coletivas, reuniões sociais, lugares públicos, concertos, ou nas assembleias em que o Administrador dá o ar da sua graça aos cidadãos, que aspiram a um contato maior com seu grande líder.

Mas o que estaria por trás de todas essas normas? A simples eliminação do sofrimento. Sim, pois para que isso fosse possível a cultura teria que ser banida. Livros, filmes e músicas que aguçassem o nosso senso crítico, ou textos que provocassem questionamentos, filmes que possam desestabilizar nossas certezas, ou nos fazer sonhar com existências impossíveis, amores que nos fariam sofrer quando não correspondidos. A isso junta-se também a extinção da monogamia, já que a constante mudança de parceiros sexuais afasta a possibilidade de qualquer empatia que mais tarde possa resultar em algum tipo de sofrimento amoroso ou sentimento de posse. A supressão da gestação nas mulheres também tem como objetivo a libertação de um sofrimento imposto pela natureza. Assim como a extinção do relacionamento entre pais e filhos, fonte de neuroses e limitações, portanto, de mais sofrimento.

Mas apesar do soma e de todas as regras garantidoras desse bem-estar coletivo, o país tem suas castas. A sociedade é dividida em Alfas, Betas, Gamas e Ípsilones, os menos relevantes. Cada um deles tem uma única tarefa, manter o sistema funcionando.

É nesse cenário que encontramos Bernard, um Beta sem muita distinção nessa sociedade, não consegue ser popular como gostaria, nem ter as mulheres que deseja, não é atraente, sente-se deslocado (dizem que tem álcool no sangue), e nutre sentimentos específicos para com a bela Lenina. Lenina é uma jovem saudável, que mantém a rotina de variação de parceiros, toma seu soma diariamente, segue à risca todas as regras, e até acha possível fazer sexo com Bernard, mas ela acha que ele às vezes age de um jeito meio estranho. Ele a recrimina por ter tantos parceiros, sente ciúmes dela, uma coisa sem sentido, se irrita com frases repetidas por Lenina, que condensam o pensamento que rege a existência naquela sociedade.

Um dia, os dois vão numa excursão até uma parte afastada daquela “civilização”, que existe como se fosse um local de exílio, uma floresta em que vivem os excluídos, os rebeldes, os que não aceitaram viver sob o soma e as regras do Administrador. São os “selvagens”. Ali eles vivem como animais, precariamente, em cavernas, cabanas, numa espécie de zoológico sem grades, açoitam a si mesmos num tipo de espetáculo aos cidadãos da civilização que vêm em bando observá-los.

Um desses selvagens é John. Bernard descobre que John é filho não reconhecido de um membro do governo e decide levá-lo à civilização, junto com sua mãe, a gorda e desdentada Linda. Bernard intui que agindo assim conseguirá ascender na sociedade e deixar para trás seus dias apagados. Finalmente poderia ter todas as mulheres que quisesse e todo reconhecimento que merecia. E é exatamente isso que acontece, Bernard perde a conta dos encontros amorosos que consegue e começa a ser benquisto por todos apenas com a promessa de levar consigo o “selvagem” a reuniões sociais, exibindo-o como uma curiosidade.

O selvagem John, é claro, não consegue se encaixar naquele mundo, para ele nada faz sentido, e sua principal atividade é ler volumes surrados de peças de Shakespeare, autor desconhecido de todos ali (aliás, uma das características incríveis do texto de Huxley é as acuradas citações dos textos do bardo em vários momentos, inclusive dando origem ao nome do livro - “Brave New World”, é tirado de Macbeth). John também não consegue aceitar a forma direta como Lenina se oferece a ele. Seus sentimentos por ela são fortes mas ele insiste em falar de amor, coisa que ela não consegue entender ou aceitar, sua irritação é crescente a cada vez que ele tenta convencê-la de que o sexo deveria ser uma consequência do amor, e não um ato mecânico.

Lenina também percebe mudanças em seu pensamento, causadas por John. Ela o deseja como o faria com qualquer outro, a diferença é que quando ele a recusa ela se magoa. Algo que nunca aconteceu antes simplesmente porque ninguém nunca a recusou. E essas recusas fazem com que seu desejo por ele aumente cada vez mais a ponto dela não querer saber de outro homem, ou seja, ela desenvolveu um sentimento por uma pessoa em especial, algo que não é permitido, nem ela nunca achou que fosse possível ocorrer.

Ao final, depois que os três são punidos e condenados a deixar Londres e irem para ilhas a suas escolhas, John escolhe uma ilha com clima frio, propício a quem gostaria de se entregar à leitura, mesmo com o sofrimento do frio, e outras precariedades. Quando perguntado pelo Administrador o porque de sua escolha ele responde: “Eu escolho o direito à infelicidade”.

Se “Admirável Mundo Novo” é um livro tão importante e suscita questões tão pertinentes, então por que me senti desapontado ao lê-lo? Talvez por certos trechos mal desenvolvidos ou das descrições truncadas de coisas que não existem (e o próprio Huxley admitia falhas na narrativa num prefácio de 1946 – o livro é de 1932), ou talvez por conta da minha dificuldade em considerar verosímeis fantasias futuristas.

Mas o que difere este livro de outras histórias futuristas, como as de Jules Verne, por exemplo, é que em Verne, o futuro é cheio de coisas novas e fantásticas, mas as pessoas agem como no tempo em que o livro foi concebido. Já em Huxley e seu “Brave New World”, as novidades são fantásticas mas modificaram o comportamento dos habitantes. E não necessariamente para melhor.

domingo, 4 de dezembro de 2016

O Noir do Mississippi

"Luz em Agosto", de William Faulkner (1932) começa nos apresentando a garota Lena Grove, que fugira de sua casa, grávida, atrás do pai de seu filho, um tal Lucas Burch. Seguindo os rastros dele acaba chegando a uma serraria. Lá percebe que as indicações que teve para encontrá-lo eram erradas pois a levaram não a Burch mas a Byron Bunch, o conhecido administrador da serraria. Byron se apaixona pela frágil e bela Lena. Ela lhe conta sua história, e ele procura o reverendo Hightower, um homem recluso, segregado e rejeitado pela comunidade pelo assassinato de sua mulher num momento de fúria ocorrido no passado para que juntos deem guarida à pobre e ingênua Lena. 

Ingênua pois pelas descrições que fez de Burch para Bunch, este logo percebeu que se tratava de Joe Brown, um dos operários da serraria. Portanto estava claro que Brown/Burch havia fugido de Lena e de suas responsabilidades de pai. 

Brown era um sujeito bruto, bronco e preguiçoso, que viu alguma vantagem em andar por aí com um tal Christmas, sujeito mau encarado que surgira na serraria procurando trabalho. Com cara de poucos amigos, falava menos ainda, mas também percebeu a utilidade em ter Brown como uma espécie de sócio no comércio ilegal de bebidas que planejava por em prática.

Christmas conseguiu abrigo debaixo do teto da sra. Berta, uma solteirona de meia idade, mas ainda atraente, que gostava de se envolver com os negros pobres que volta e meia iam e vinham da pequena cidade de Jefferson.

Christmas é um homem atormentado pelo passado - e todos os personagens do livro também, aliás. Um passado de violência familiar, pobreza, decepção e a sombra de uma linhagem negra que ele tenta a todo custo esconder. Sua forma de lidar com o mundo é confrontando-o brutalmente, a ele e a quem colocar-se em seu caminho.

Já Byron Bunch, seuas preocupações têm a ver com o destino de Lena, e a angústia de vê-la iludida pelo homem que a engravidara, sentindo ainda sentimentos amorosos por ele.

Quanto ao reverendo Hightower, sua cruz não era o fato de ter sido afastado do convívio da comunidade, mas a tentativa de Byron de colocá-lo de volta nela envolvendo-o num assunto que não lhe compete.

As coisas complicam quando Christmas num acesso de fúria mata Berta, decapitando-a, e põe fogo em sua casa. A partir de então começa uma caçada ao assassino que manterá todos numa tensão constante em que interesses presentes e fantasmas do passado se unirão para influenciar e decidir o futuro de Byron, Lena, Hightower e Joe Brown.

A prosa de William Faulkner tem uma elegância austera, dura como os cenários que retrata, o sul dos EUA, seus pântanos, paisagens áridas em que pessoas paupérrimas sobrevivem em cabanas desoladoras, ou em comunidades religiosas em que os maiores arbítrios ocorrem em nome de Deus.

Grande parte das mais de quatrocentas páginas do livro se passam dentro da mente dos personagens. Através de suas ideias limitadas, confusas, de suas lembranças traumáticas. Eles não são idealistas, nem tem grandes planos para suas existências, antes, parecem conformados com suas vidas, e agem como se nunca tivessem esperado algo mais delas.

Faulkner utiliza neologismos que nos lembram os de James Joyce, por exemplo. Sua narrativa não é linear, modifica-se a cada vez que a história é contada por um personagem diferente. E em momentos um mesmo trecho é contado por distintos pontos de vista dos envolvidos. O que faz com que a história ganhe um aspecto de livro policial, novela detetivesca em meio ao pântano das almas dos habitantes do delta do Mississippi.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Capitu 2.0

Faz tempo que ouço falar do escritor Marcelo Mirisola, desde a década de 90, pra ser exato. Mas nunca havia lido nenhum de seus livros, apenas artigos em jornais, geralmente espinafrando uns e outros.

Acabei há pouco um romance seu, “Joana a Contragosto”, publicado em 2005 (mais de dez anos!) pela Ed. Record. E devo dizer que gostei bastante.

O livro conta a estória de um escritor (mais um menos parecido com o próprio Mirisola), que se envolve com uma maluquete chamada Joana. Na verdade ela é que entra em contato com ele dizendo ser sua fã. Mas além de explicitar sua admiração também lhe manda fotos do seu belo corpo. O escritor no início pensa ser vítima de algum trote mas aos poucos percebe que a coisa é de verdade. Ela, a cada e-mail mandado se mostra cada vez mais solícita e apaixonada. O escritor, interessadíssimo, resolve viajar ao Rio de Janeiro para encontrá-la (ele mora em Florianópolis).

Lá chegando, eles se encontram num hotel fuleiro, à meia-noite, transam loucamente, e o escritor entrega seu amor e sua alma àquela desconhecida. A partir daquele momento sua vida estará ligada a de Joana, desenvolverá uma paixão arrebatadora, que, logo percebe, não é correspondida. O que era paixão acaba virando obsessão.

Um resumo destes, reconheço, é muito redutor. “Joana a Contragosto” apresenta-se ao leitor como um redemoinho que englobasse o escritor-personagem, a doida Joana, a cidade do Rio de Janeiro, tudo num fluxo de consiência cheio de idas e vindas no tempo cronológico dos acontecimentos, de repetições que ressaltam o aspecto obsessivo do protagonista.

Mas quem seria esse protagonista? O escritor ou Joana? Ele por nos contar a história ou ela por fazer com que ela exista? Afinal, o livro todo gira em torno da sua existência. O narrador, apesar de ser a voz ativa no livro, não o é em sua própria vida, esta seguindo ao bel prazer das promessas ou recusas vindas de sua paixão.

Joana seria uma espécie de Capitu 2.0 movida a cocaína e sexo. Colecionando parceiros e amando a todos eles, ou ao menos, da boca pra fora (e da buceta pra dentro).

O escritor fantasia um futuro amoroso com Joana, filhos, casa, vida em comum, mostra-se disposto a abdicar de sua arte e de sua condição de outsider literário para abraçar com gosto a vida mais comum e convencional em nome desse amor. Mas, Joana, apesar de dizer amá-lo, o rejeita fisicamente. Aos poucos ele descobre que suas juras são as mesmas para vários, o que não faz com seu amor por ela recrudesça, ao contrário, ele sabe que mesmo que nunca mais a veja sempre a amará.